A chuva começou de madrugada. Pedro estava dormindo, mas ouviu a chuva e sonhou que tomava banho. Acordou com sede em mais um domingo.
Levantou-se, caminhou até a janela, e escutou a voz forte que batia no telhado e escorria para o chão. Definitivamente, não foi este barulho que o acordou, senão a sede. Talvez fosse hoje o dia?, se perguntou. Foi a cozinha e bebeu um copo d´água. Já era dia, ainda que cedo, mas as nuvens insistiam em barrar a luz, e deixar uma escuridão cinza marcar o céu.
Pedro, que morava no bairro do São José, não tinha ainda programa para aquele domingo. Pensou em ir ao culto, ou assistir a chuva, como fazia religiosamente em dias nublados. Foi ao parque treze de maio, na chuva. Passeou com uma capa azul, meio transparente, que deixava atravessavar a cor da camisa branca que usava embaixo. Tinha ainda um guarda chuva safado que quebrou com o primeiro sinal de vento mais forte um pouco. A capa foi suficiente; molhava um pouco a testa, e atrapalhava um pouco a vista, embaçando os óculos, mas protegia a maior parte do corpo. Tudo o que precisava era dos seus ouvidos.
A praça vazia, em época de chuva, afastava inclusive os mendigos que ali habitavam. Se mudavam temporariamente para as marquizes das ruas vizinhas. 'VocÊ tem que ter uma saúde de ferro para ir, nessa chuva, caminhar no treze de maio', imaginava o que iriam lhe dizer. Em verdade costumava ter, ficou doente a última vez na infância, curado por uma benção. Não tinha medo de gripes, sabia que Deus tinha um plano para ele, e esperava o seu chamado.
Talvez uma chuva forte fosse o prenúncio de uma nova ordem, de uma nova manifestação de ira do Senhor. Pedro gostava quando chuvia. Lembrava-se de Noé. Pensava que agora iria ouvir o seu chamado, que conseguiria uma counicação direta com Deus, "seria agora que me enviaria um anjo, que me chamaria para atender o seu chamado? Senhor, estou pronto".
O parque vazio na chuva era um bom lugar para decifrar a voz de Deus. Sabia que o barulho da chuva que cada som que as gotas da chuva faziam quando caiam continham uma mensagem a ser decifrada. Pedro fechava os olhos e escutava uma sinfonia das águas escorrendo do céu para os telhados, plantas, pessoas, carros, e toda a sujeira que circulava na cidade. O cheiro forte que sobe é a própria angústia que Deus sente com os recifenses. Precisamos de um lugar limpo e todos os que mais precisam do banho sagrado estão protegidos. Fechava os olhos e sentia que podia ouvir num grande ruído toda a natureza, sons emitidos pelos siris mergulhados na lama, às baratas nas galerias, aos homens comentando o último jogo do Santa.
Pedro sabe o que Deus quer dele. Sabia que aquela chuva queria dizer-lhe algo. Ele podia sentir, mas não traduzir em palavras. Sempre soube, desde aquela benção que o curou de uma gripe forte e o aproximou definitivamente à direita do Pai. Sabia que estava ali para ser instrumento, e a chuva seria o canal de comunicação, traduzia toda a natureza, ligava todas as águas, ali ele tinha o mar, os rios, os canais, os esgotos evaporados e purificados no pleno contato com o Divino.
Pedro aguardava, quando vou entender? quando a mensagem me será revelada? Sabia que não devia ficar ansioso. Quando a hora chegasse, ele iria saber.
As águas continuavam a cair do céu. A chuva parecia ter engrossado. O que isto poderia significar? Não sabia. Pedro tinha vontade de chorar. "Por que este martírio Senhor, por que me forças a andar às cegas?". Sentia raiva, revolta. Seria ele espelho da vontade divina? Sua raiva era a raiva do Senhor? Estaria ele ligado por aquela água de modo purificado para sempre à Deus, sendo ele agora órgão das atividades divinas.
Olha para frente, vê as plantas. As árvores antigas que sempre estiveram naquele parque. Pedro se sentia igual a elas. Sou filho de Deus, produto da natureza, pensava solitariamente. Sentia-se parte do ambiente. Aquela espera, ainda que demorada, ainda que martirizante, fazia-o sentir-se como aquelas plantas, pertencentes ao treze de maio, e isso trazia-lhe uma alegria, uma sensação única de pertencimento. Pensava às vezes que não queria decifrar nada, queria apenas viver embaixo da chuva no treze de maio. Quando a chuva acabava, em outras vezes, sentia a obrigação de sair dali, além de se sentir incapaz. Incapaz por não poder continuar ali junto com a chuva.
Às vezes queria ser Deus, e fazer chover sem parar. Gostaria de matar todos afogados, as plantas, as pessoas, as crianças. Derramaria uma chuva ácida que derreteria o bronze das estátuas do parque, o ferro dos barcos e a casca dos siris. Às vezes Pedro tinha muita raiva dos mendigos que se protegiam da chuva e mijavam no chão. Tinha raiva dos lojistas que não acolhiam os mendigos. Tinha raiva dos carros que passavm e atropelavam os mendigos. Tinha raiva da chuva que todos odiavam.
Pedro às vezes se sentia muito confuso. Queria esperar, queria ter paciência, queria que a chuva o cobrisse até que morresse sem ar. Queria que a chuva só matasse ele, que era surdo e não entedia Deus. Queria criar raízes embaixo da terra, e comer o barro de onde veio. Pedro não aguentava mais os dias de sol, não aguentava mais o fedor do bairro de São José, não aguentava mais o banho que a chuva lhe dava. Ele não queria mais esperar. Pedro queria nunca ter sido abençoado.
Pedro não escutou voz nenhuma. A chuva engrossou e seus óculos estavam completamente embaçados.
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